Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi foi o livro de agosto da TAG- Experiências Literárias. Portanto, vou me deter mais à obra e minhas impressões, pois ainda não havia tido a oportunidade de conhecer o escritor em questão.
O que posso informar sobre o escritor (esse conteúdo está na revista que acompanha o kit da TAG) é que era italiano e apaixonado por França e Portugal.
O amor por Portugal era tamanho que Tabucchi viveu muitos anos no país (e lá faleceu, em Lisboa), enquanto lecionava Literatura Portuguesa na Universidade de Siena, fazendo essa ponte entre França e a capital lusitana. Grande admirador de Fernando Pessoa, encarregou-se de traduzir e reverenciar a obra pessoana; o escritor ainda foi responsável pela difusão de obras, também por meio de traduções e ensaios, de José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade. A língua portuguesa, ao que parece, foi sua pátria.
Com as devidas apresentações feitas, vamos ao livro. Gostaria de citar uma passagem, logo na primeira página, que faz com que o leitor se sinta atraído e empático à figura de Pereira:
"Naquele belo dia de verão, com a brisa atlântica acariciando o topo das árvores e o sol resplandecendo, e a cidade que cintilava, literalmente cintilava sob sua janela, e um azul, um azul jamais visto, afirma Pereira, de uma limpidez que quase machucava os olhos, ele começou a pensar na morte. Por quê? Isso Pereira não consegue dizer. Vai ver porque seu pai, quando ele era criança, tinha uma agência funerária que se chamava 'Pereira, a dolorosa', vai ver porque sua mulher tinha morrido de tuberculose alguns anos antes, vai ver porque ele era gordo, sofria do coração e tinha pressão alta, e seu médico tinha dito que se continuasse daquele jeito não lhe restaria muito tempo mais, mas o fato é que Pereira começou a pensar na morte, afirma" (TABUCCHI, 2020, p. 13).
O romance de fato começa com a frase "Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de verão". Essa personagem, anônima nesse primeiro momento, vai ser fundamental para o desenvolvimento da narrativa. A partir de então, ambos dançam em um fio de alta tensão, um personagem reflete, repele e atrai o outro - tudo ao mesmo tempo.
Ambientado em Portugal, 1938, em meio ao salarismo, junto com outros -ismos ganhando força na Europa, doutor Pereira - jornalista responsável pela coluna cultural do jornal Lisboa - conhece, portanto, Monteiro Rossi, jovem envolvido no movimento de resistência ao fascismo.
Doutor Pereira, como o trecho acima deixa explícito, é viúvo e possui problemas cardíacos. Sua vida se baseia em escrever matérias para o jornal e frequentar o Café Orquídea para comer omeletes com ervas aromatizantes e tomar limonada. Conversa com o retrato da esposa falecida, é bastante reservado. Não quer se envolver com política, é católico, preocupa-se profundamente com o tema da morte (excerto, de novo), da alma e da ressurreição da carne.
O romance, portanto, se desenvolve a partir dessa amizade (?) (relação?) (é complexo definir, mas defino como amizade!) entre Pereira e Monteiro Rossi dentro de um cenário de repressão em Portugal. A partir daí, tomamos conhecimento de como o pacato doutor Pereira lida com tantas contradições e desejos internos de, enfim, deixar de ser assim tão... neutro.
No romance, sabemos que a polícia persegue contraventores, que há escutas telefônicas por todos os lados, que temas proibidos não podem ser tratados, mas essa parte mais violenta dá lugar à expressão da vida de Pereira que é, justamente, não se envolver e não arranjar problemas. Ainda assim, o jornalista não se conforma diante disso e vive um conflito enorme em relação às atitudes que deveria ou poderia tomar, uma vez que trabalha em um veículo de informação.
Pereira, por sua vez, preocupa-se com o caderno cultural, a cultura nada tem a ver com a política (ele é INGÊNUO, gente). Traduz contos franceses, desde que os escritores sejam católicos e não saiam da linha imposta pela censura. Sobre a repressão do que pode ou não ser dito, temos uma boa ideia com este excerto:
"Mas o Lisboa não tivera coragem de dar a notícia, ou melhor, o vice-diretor, porque o diretor estava de férias, estava em Buçaco, desfrutando o ar fresco e as termas, e quem poderia ter a coragem de dar uma notícia daquelas, a de que um carreteiro socialista fora massacrado no Alentejo em sua carroça, respingando sangue em seus melões? Ninguém, porque o país se calava, não se podia fazer outra coisa senão calar, e enquanto isso as pessoas morriam e a polícia mandava e desmandava. Pereira começou a suar, porque pensou novamente na morte. E pensou: esta cidade fede a morte, a Europa toda fede a morte" (TABUCCHI, 2020, p. 18).
A narração fica por conta desse narrador onisciente, que faz questão de falar o tempo inteiro "afirma Pereira". Fiquei refletindo sobre esse recurso estilístico e penso que o narrador, para não comprometer-se com o que diz, faz questão de frisar que tais fatos são afirmados por Pereira. Quem quiser que se entenda com o doutor Pereira!
Os capítulos são envolventes, Pereira é um personagem crível, cheio de complexidades - se achando uno - e ingenuidades. Marta, paixão de Monteiro Rossi e ligada à resistência, é tida por Pereira como a grande causadora de problemas de Rossi, pois, "afirma Pereira", o garoto deveria deixar de procurar problemas. Mesmo assim, Pereira é paternal, a julga mais incisiva e esperta, não a vê como maldição de tudo.
Gostei muito da história, dos personagens, do estilo de escrita do autor. (Re) Visitar Lisboa através da literatura é muito agradável, reviver passeios pela Avenida da Liberdade, no Terreiro do Paço e na Praça do Rossio. Confesso que esse lado afetivo também pesou bastante.
Fica a recomendação de leitura, principalmente para quem é assinante da TAG e está deixando Afirma Pereira para o final da fila. Vale a pena começar agora!
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