3 caminhos para a poesia

Por We can be readers - novembro 06, 2020

Hoje é 6 de novembro, data que marca o nascimento da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que completaria 101 anos - caso ainda habitasse essas terras. Porém, em 2004, Sophia voltou a viver junto ao mar, como declarara em um de seus poemas, deixando um legado precioso em matéria de poesia, contos e livros infantis. 

O episódio do podcast (ouça aqui) não poderia ser sobre outra coisa (embora, verdade seja dita, eu simplesmente estivesse em busca de uma pauta sólida). Eis que essa data resolve tudo.

Sophia cantou o mar, sua poesia é repleta dessa imagem - desenhada ou escrita diretamente. Poesia é seu primeiro livro e ela já chega com poemas de forças inenarráveis, como é o caso desse aqui, sem título:

Apesar das ruínas e da morte,

Onde sempre acabou cada ilusão,

A força dos meus sonhos é tão forte,

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias. 

(ANDRESEN, 2018, p. 45)

Um trecho de Arte poética II é suficiente para dar conta de toda a magnitude e complexidade de Sophia:

"Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição de rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão" (ANDRESEN, 2018, p. 362). 

Mas que estranhos são os caminhos da poesia... a partir de Sophia, quis trazer para o episódio um pouco da feliz descoberta da Poesia completa de Cacaso, que eu tangencio para puxar um gancho (ou uma âncora?) para a Poética de Ana Cristina Cesar. 

O engraçado (ou o caótico) é que eu não justifico (tanto) a presença de Ana Cesar - apenas achei que já era o momento de falar de sua obra tão vasta, muito maior do que sua breve vida e sua trágica partida. 

Não que a obra seja infalível - Ana estava experimentando e os textos reunidos em Poética (2013) atestam isso. Muita escrita, devaneio, tentativa e erro, desenho, criação. Mas a obra apontava para algo que iria ser (mais) grandioso e sólido, algo concreto em sua fluidez. A poesia possui tais paradoxos. 

Cheguei em Ana Cesar (na ocasião desse episódio) a partir do poema "Surdina", do Cacaso, do qual cito apenas os versos finais:

"...

E agora é Clara Nunes

que morre ainda menina!

É demais! Que sina!

A melhor prata da casa

o ouro melhor da mina

Que Deus proteja de perto

a minha mãe Clementina!

Lá vai a morte afinando

o coro que desafina...

Se desse tempo eu falava

do salto da Ana Cristina..."

(CACASO, 2020, n/p). 

Quando penso em Ana Cristina Cesar, o poema a seguir SEMPRE me vem à mente. Ele é o primeiro de Cenas de abril, que inaugura o compêndio Poética. Esse primeiro contato foi muito profundo e talvez seja por isso que esse poema ressoa em mim quase como respirar:


recuperação da adolescência

é sempre mais difícil

ancorar um navio no espaço

(CESAR, 2013, p. 17)


O terceiro poema, sem título, possui uma intensidade tão forte quanto a primeira experiência:


olho muito tempo o corpo de um poema

até perder de vista o que não seja corpo

e sentir separado dentre os dentes

um filete de sangue

nas gengivas

(CESAR, 2013, p. 19)


Um poema que tentei encontrar para falar no episódio e, no momento da busca falhei miseravelmente, reproduzo aqui e acho ele maravilhoso em sua simplicidade e em sua (quase) obviedade:


a gente sempre acha que é

Fernando Pessoa 

(CESAR, 2013, p. 143)


Esse poema me remete não só ao desejo de um poeta em querer ser o gênio Fernando Pessoa, mas, quem sabe, a nossa ilusão de nos sentirmos tão diferentes e imprevisíveis - tem situações em que agimos tão controladamente quanto uma formiga trabalhando no armazenamento de comida. 

Lembro que, no meio desse compêndio de poemas, fragmentos, desenhos, correspondências e diário, Ana Cesar utiliza o termo "cadernos terapêuticos" lá pelas tantas. Essas duas palavras sempre me intrigaram, pois eu creio que a escrita pode ser de muito valor quando nos falta a oportunidade de oralizar nossos sentimentos. Porém, eu nunca imaginei que uma escrita íntima poderia ser tão compartilhada. Acho que foi mais ou menos nessa época - até um pouco depois - que comecei a dar mais atenção para diários, anotações pessoais dos escritores. É impressionante o quanto podemos descobrir sobre uma pessoa que escreve só pelos termos e as referências que coloca nos cadernos de foro íntimo.

Encerro este post com mais um poema daqueles de derrubar qualquer uma:


fisionomia

não é mentira

é outra

a dor que dói

em mim

é um projeto

de passeio

em círculo

um malogro

do objeto

em foco

a intensidade

de luz

de tarde

no jardim

é outra

outra a dor que dói.

(CESAR, 2013, p. 230)


Assim me despeço desse post especial, dedicado a descrever o episódio 26 - que sai em breve, bem antes da decisão presidencial dos Estados Unidos. 

Ouça os episódios do podcast, apoie causas independentes. Sei que tá foda consumir tanta coisa online que surge a cada dia, mas apoia as mina das cidades do interior do interior do interior a crescer só um pouquinho mais.

Tcha-aau. 



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