Como se conta o que se conta

Por We can be readers - janeiro 11, 2022

 

Olá, readers do universo. Vamos falar sobre forma?

Quando gravei o episódio 45 de We can be readers, eu e o Cristiano Vaniel conversamos (mais nos bastidores do que no episódio propriamente dito) sobre o quanto a forma é importante em uma história.

Mas o que é a forma? Ora essa, a forma é o contorno que sustenta o conteúdo. Muitas narrativas possuem uma forma, digamos, simples. Isso não quer dizer que isso resulta em uma narrativa simplista. O que seria uma forma simples? Sei lá. Alguém contando uma história linear, com alguns flashbacks sobre alguns personagens, sem grandes estratégias. Já digo que fazer um monte de inovações não é garantia de que a coisa vai ser boa. Tem escritores que só fazem malabarismo pra ser "inovador" e "difícil" e só fica medíocre mesmo. 

Na edição 23 da newsletter Perdi o bonde e a esperança, divulguei o melhor livro lido em 2022. Sim, não estamos nem na metade do primeiro mês do ano e já tenho um livro favorito, um livro que me revirou do avesso, um livro que me fez querer não fazer mais nada além de ler. Se trata de Na casa dos sonhos, de Carmen Maria Machado. 

O tema é forte: as memórias de Carmen Maria Machado estão centradas na experiência de violência doméstica que ela sofreu em um relacionamento - um relacionamento lésbico. A escritora chama a atenção para o fato de que o assunto é geralmente escamoteado, pois a comunidade queer já sofre todo o tipo de preconceitos, imagine só carregar mais o estigma de que mesmo num relacionamento com uma mulher você corre o risco de sofrer abuso físico e psicológico. 

Um livro de memórias (autobiografias) pode ser escrito de diversos jeitos, ainda que a maioria siga a forma canônica: infância, fase adulta até um determinado ponto da velhice, isso considerando que a pessoa escreve esse tipo de livro em idade mais avançada, mas nem sempre é assim, sabemos disso. Porém, não é só de um jeito que se conta uma história, nem mesmo uma história sobre a própria vida. 

Um exemplo bem nosso: Carlos Drummond de Andrade, quando biografou sua persona poética, o fez na forma que mais conhecia, a poesia

Mas vamos voltar à Carmen. Quando fala de suas memórias, ela fala muito sobre escrita e como organiza a escrita em sua vida. Na casa dos sonhos é um livro autobiográfico, mas também é um livro sobre contar histórias se você for uma leitora atenta. Aliás, nem precisa ser tão atenta assim. Carmen nos dá indícios mais do que visíveis e suficientes para percebermos que o lance dela é contar uma história que seja sobre ela e sobre algo maior - uma narrativa do mundo. 




Aqui eu vou fazer um control cê + control vê do que escrevi na newsletter da semana:

Carmen perpassa vários gêneros, espalha motivos folclóricos de contos antigos e contos de fadas, identificando-os dentro de sua própria história. Esses motivos aparecem referenciados por ela e foram retirados do Motif-Index of Folk-Literature, um compêndio que de seis (!!!) volumes que reúne os motivos, "elementos granulares" do folclore, organizado por Stith Thompson. Como isso aparece nas memórias de Carmen? Vejamos um exemplo:

Algumas semanas depois, ela conta por telefone que vai parar de ir à terapia. "Não tenho tempo pra isso", ela diz. "Ando ocupada pra caralho".

"É uma hora por semana", você diz, arrasada.

"Além do mais, ele disse que eu estou ótima", ela diz. "Disse que não preciso de terapia".


Ao final dessa frase, há uma nota de rodapé que remete à informação: "Thompson, Motif-Index of Folk-Literature, Tipo X905.4, O mentiroso: "Não tenho tempo para mentir hoje", mente assim mesmo".

Muitos outros motivos e tabus desse estilo são identificados ao longo do texto, o que, me parece, confere à história de Carmen o status de história dentro do núcleo de tantas outras histórias.

O livro está dividido em cinco partes e cada uma delas possui muitos capítulos, todos seguindo o modelo Casa dos sonhos como .... Raros são os capítulos longos, acho que justamente por essa iniciativa de Carmen de testar a forma até seu limite e nos fazer observar a sua história por diversos ângulos.

Assim, temos:

Casa dos sonhos como abertura

Nunca leio prólogos. Acho muito chatos. Se o assunto é tão importante, por que relegar ao paratexto? O que a pessoa que escreveu o livro está tentando esconder?

(Esse capítulo em questão eu transcrevi na íntrega. Reparem como Carmen critica aquilo que ela mesma faz a seguir com um prólogo. Ela não suporta que escritores queiram fazer um rodeio, a fim de esconder alguma coisa, mas ela mesma não se sente segura a ponto de nos entregar sua história de modo tão direto)

Casa dos sonhos como prólogo

[...] Decidir o que entra ou fica fora do arquivo é um ato político, ditado pela arquivista e pelo contexto político no qual ela vive. Isso vale tanto para uma mãe ou um pai que decide quais partes da primeira infância do filho deve fotografar quanto para um continente que acerta as contas com seu passado em público - como a Europa com suas Stolpersteine, suas "pedras de tropeço" que relembram as vítimas do holocausto. [...]

(Os colchetes no início e ao fim indicam que só peguei um trecho desse capítulo maior)

I

Casa dos sonhos como não metáfora

[...] Estou tocando nesse assunto porque é importante lembrar que a Casa dos Sonhos é real. É tão real quanto o livro que você tem em mãos, e bem menos assustador. Se eu quisesse, poderia te dar o endereço para que você fosse até lá com seu carro e se sentasse na frente daquela Casa dos Sonhos, tentando imaginar as coisas que acontecem lá dentro. [...]

Casa dos sonhos como obra picaresca
Casa dos sonhos como máquina de movimento perpétuo

... (e assim vai)

Outra coisa interessante é que Carmen, na maior parte do livro, conta a história para ela mesma. Esse "você" que aparece com frequência nada mais é do que a escritora falando consigo mesma, revivendo as cenas terríveis que já passou. 

Um último exemplo, o capítulo na íntegra

Casa dos sonhos como Sodoma

Como a mulher de Ló, você olhou para trás, e, como a mulher de Ló, foi transformada numa coluna de sal (Thompson, Motif-Index of Folk-Literature, Tipo C961, Transformação em coluna de sal por ter quebrado tabu), mas, ao contrário da mulher de Ló, Deus lhe deu uma segunda chance e fez de você humana de novo, mas aí você olhou pra trás mais uma vez e virou sal, aí Deus teve pena e te deu uma terceira chance, e vez após vez você voltou tropeçando para os seus muitos equívocos e complacências; num instante imóvel e no outro andando desengonçada, seus membros moles dando meia-volta e seu corpo cambaleando pela terra, e em seguida rígido feito um tronco de árvore, mais uma vez com uma aura de poeira, depois rodopiando pela estrada com o fogo chovendo às suas costas; e jamais houve uma mulher tão caricaturesca quanto você - de animal a mineral e tudo de novo. 

É essa dinâmica da forma que faz o relato de Carmen tão cativante. É lógico que se fosse escrita de forma linear o livro teria sua importância por tratar de um tema extremamente importante. Porém, ao dinamizar a forma, Carmen torna sua história gigante.


Espero que tenham curtido essa resenha (?) estendida e nos vemos no próximo post. 

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