Contos curtos para momentos de surto

Por We can be readers - maio 28, 2020

Como vai a leitura na quarentena? - Pergunta que todo o estudante de humanas - em situação de graduação ou mestrado e doutorado - deve estar ouvindo (lendo) muito ultimamente. 

É difícil focar? Sim. Tem dias que simplesmente a coisa não flui. E tá tudo bem, aqui ninguém é a Regina Duarte para "tirar o cemitério das costas", até porque mil mortes por dia é algo assaz preocupante para quem está confinado há quase três meses. 

Porém, para quem não pode viver sem um livrinho na mesinha de cabeceira, resolvi apresentar para vocês o escritor angolano Gonçalo M. Tavares. Bastante aclamado, o escritor já garantiu oito premiações consagradas ao longo de sua carreira, dentre elas o Prêmio Literário José Saramago em 2005 e, o mais recente, o Prêmio Vergílio Ferreira, em 2018. 

Conheci Gonçalo (a obra, na verdade) assim do nada. Passei uns dias na casa da minha prima e na estante dela, além de obras incríveis de Lispector, Beckett, Marcelino Freire, havia o romance (?) Mateo perdeu o emprego. Eu já havia lido algumas resenhas sobre a obra de Gonçalo no jornal Rascunho ou Suplemento Pernambuco, agora não lembro exatamente. Mas era aquela coisa: eu lia a resenha, ficava curiosa pelos livros, só que isso nunca acabava indo adiante. Encarei Mateo perdeu o emprego e digo para vocês: que troço doido!

O livro (catalogado como ficção portuguesa, creio que por conta dessa impossibilidade de classificar essa história) divide-se em 26 capítulos e o nome das personagens segue a ordem alfabética. Por essa razão, temos, aproximadamente, vinte e poucos personagens com alguma ligação tênue ou direta com o personagem anterior, de modo que é difícil estabelecer apenas um fio narrativo. Dentro dessa lógica alfabética surgem múltiplas possibilidades. É kafkiano demais, posso garantir. Gonçalo M. Tavares nos leva para um universo absurdo bem à moda Kafka. O absurdo não é aquele da violência, o da perda dos direitos, o da desigualdade social. O absurdo é o cotidiano. 

Vou deixar um trecho do primeiro capítulo só para vocês sentirem  o gostinho:

AARONSON E A PRIMEIRA ROTUNDA

Nem sempre Aaronson esteve morto.
Num certo período, Aaronson foi mesmo, sem exagero, um ser vivo.
Entre os vinte sete e os trinta anos Aaronson circulava - como um inseto obcecado - em torno de uma rotunda.
Todas as manhãs, um homem era visto, entre as sete e as sete e meia, a contornar a rotunda principal da cidade, rotunda onde desembocavam sessenta por cento do tráfego.
Às sete da manhã a fumaça dos automóveis era menor que ao fim da tarde, porém, mesmo assim, havia fumaça, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis. E ali, no meio, correndo risco de vida, um homem dava centenas de voltas à rotunda, Aaronson (TAVARES, 2013, p. 7).

A coisa vai se desenvolvendo nesse nível, até lá pelas tantas chegarmos ao capítulo em que "Mateo perdeu o emprego". Não demora muito para se descobrir que esse rocambole todo não é sobre Mateo; ele é apenas uma das peças absurdas dessa engrenagens, que começa com Aaronson e termina em Mateo. Por isso é muito difícil explicar o que é esse livro. 


Esses são os livros de Gonçalo M. Tavares que já li

O elemento que une a obra de Gonçalo, pelo menos aquilo que conheço até o momento, é o nonsense, o absurdo à la Kafka, mas, ao mesmo tempo, diferente. A indicação de leitura, no entanto, não é (apenas) Mateo perdeu o emprego, mas uma seleção de histórias curtinhas chamada Short Movies. Por apresentar-se de modo tão visual, creio que funcione mesmo como um curta cinematográfico. Dá para ler em uma tarde; mesmo que você queira sorver o livro com calma, não dá, ele é tipo um vórtice que te puxa e só solta no final. Aqui vai um dos contos que compõem Short movies:

A máscara

Um homem com uma máscara de gás na cara. O rosto disforme. Como se fosse um monstro. Ele faz depois os gestos de um chimpanzé. Põe as mãos curvadas e simula os pequenos saltos e movimentos do chimpanzé.
O plano abre-se. Vemos para quem ele está a fazer aquilo. É para uma mulher. Uma mulher muito velha. Moribunda; ligada a várias máquinas e com soro a entrar no braço. Mesmo assim, a velha mulher sorri, primeiro; depois ri, ri muito, não consegue parar de rir. Só a vemos rir, como se tivesse perdido o controlo (TAVARES, 2011, n/p). 

Pensando nesses livros do Gonçalo M. Tavares que acabei lendo, penso nele como mais um dos investigadores dos mistérios filosóficos do que é ser humano e por que fazemos o que fazemos. Junto com Edgar Allan Poe, Silvina Ocampo, Hilda Hilst e Carlos Drummond de Andrade (aqui no meu inventário pessoal de escritores filosofantes), Gonçalo esmiuça o cotidiano e coloca em evidência os absurdos que às vezes nos escapam, porque muito naturalizados.

Espero ter contribuído com essa dica de leitura. Procurem os livros do Gonçalo, vale muito a pena! :)


Antes de ir embora, alguns recadinhos:

Já ouviu o episódio 4 do podcast? Eu e o Régis Garcia debatemos Assim na terra como embaixo da terra, da Ana Paula Maia. Esse episódio inaugura uma série de discussões sobre literatura e violência, está imperdível! Acesse o episódio aqui

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Até outro dia, tchau!




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