A liberdade é uma luta constante

Por We can be readers - junho 08, 2020

Esse é o título de um importante livro de Angela Davis, no qual ela discute questões sobre direitos civis, capitalismo, o sistema carcerário dos EUA e feminismo. Ao longo dos textos dessa obra, a autora demonstra o quanto nunca estamos seguros o suficiente para perder de vista o ninho aconchegante onde dormem os nossos direitos, sempre com algum predador à espreita. Porém, o assunto hoje é um pouquinho diferente - e igual, ao mesmo tempo. Paradoxos!

A leitura de autoras e autores negros em diversos campos do conhecimento tem feito parte da minha vida já há algum tempo, embora bastante recente: não foi tão cedo assim que percebi que lia apenas autores brancos, homens, canonizados e pertencentes a uma classe privilegiada, seja no Brasil ou qualquer outro canto do mundo. Sentindo que precisava ampliar o meu universo de vivência ficcional e teórica, passei a ler mais obras publicadas por mulheres e isso acabou me levando para a leitura de publicações de mulheres negras, mulheres/ homens indígenas, vozes africanas colonizadas. Houve, portanto, um momento no qual me dei conta de que representatividade importa e deveria mudar meu comportamento frente a leitura. 

Dito isso, já faz tempo que acompanho o trabalho de Angela Davis, Djamila Ribeiro; estou começando a conhecer Sueli Carneiro e desejo muito ingressar nas leituras de Lélia Gonzalez, se a pandemia permitir. Quando li Angela Davis pela primeira vez, percebi o quão importante é o recorte de raça e classe feito por ela e comecei a me interessar e me identificar com o feminismo interseccional e a perceber como a luta feminista deve começar trazendo a mulher negra para escalas superiores da estrutura da sociedade se quiser que essa sociedade tenha o mínimo de decência.

Assim, sinto que é o momento de trazer as vozes do pensamento negro para uma posição central na minha vida, mais do que já é - e pretendo reforçá-las, pois os tempos têm sido de vírus e de vermes, tempos de problemas antigos, problemas que os africanos trazidos para o Brasil e levados para diversas partes do globo têm enfrentado e parecem sem solução.

Quero compartilhar com vocês alguns poemas, trechos de slam poetry, trechos de romances de autoras e autores negros, que são fundamentais nesse processo de conscientização da sociedade, mas que não deveriam ser os únicos a apontar um problema. O racismo foi criado pelos brancos e deve ser por eles resolvido. O racismo não deve ser a preocupação de meus amigos negros com medo de serem abordados por uma polícia violenta na rua. O problema do racismo tem a ver comigo, mulher branca, quando voto em um fascista e não enxergo as consequências disso na estrutura da sociedade. Mas quem vota em fascista se preocupará com o que, né mesmo? 

O poema "Genocídio", de Danielle Almeida, publicado na coletânea de poetry slam, Querem nos calar,  organizada por Mel Duarte e com prefácio de Conceição Evaristo, não deixa nada implícito nos seus versos - dá a César a culpa que lhe pertence: 

Pra índio terra é sagrada, é vida.
Pra latifúndio não passa de lucro.
É soja pra perder de vista,
É gado pra mais de mil cabeça.
Milho nem se fala...
Homem branco pensa na terra pra negócio,
Ele tem o manual para destruir os indígenas.
Chega a me doer quando eu passo na rua e vejo em um outdoor
escrito:
"Incentive o agronegócio",
Enquanto tem índio passando fome
Sem poder cultivar nem o que come.

[...]

(DUARTE, 2019, p. 81, grifo meu)

A pauta recorrente nos versos dessas jovens autoras é a das minorias: mulheres negras, índios massacrados, o capital que não poupa nada nem ninguém. O capitalismo precisa ser cada vez mais apontado como o inimigo número 1 de qualquer ser humano (menos dos bilionários, claro), pois explora em larga escala as minorias citadas, criando um poço bastante fundo na vida de todas as pessoas e em diversos níveis. Esses níveis tornam impossível enxergar o nosso desnível, a nossa desgraça social. Sílvia Federici em seus dois livros capitais, Calibã e a bruxa e O ponto zero da revolução nos dá uma visão mais ampla dessa questão do capitalismo como exploração principal das mulheres (negras, indígenas, latinas, outras etnias e minorias) e ficam aqui como sugestão. 

Elisa Lucinda, famosa por sua atuação em novelas da Globo, bem como seu trabalho no teatro, é uma poeta e romancista de mão cheia. Não lhe faltam palavras e ela trabalha muito bem a questão performática do verbo. É começar a ler e ouvir a voz de Elisa, forte, batendo a cadência do verso no peito.

Meninos pretos 
                           a Rodrigo Campos

Abro o jornal:
a velha tarja preta na jovem cara preta,
esse petróleo desperdiçado.
Não quero mais que matem nossos meninos,
tantos pretos lindos.
Quero em suas bocas, argumentos.
Quero em suas mãos, instrumentos.
Ó pobres, desprezados menininhos 
Era só pegar o cavaquinho...

(LUCINDA, 2016, p. 234)

Elisa canta outros cantos: o corpo, o Brasil, o sexo, a maternidade. Seu cantar, no entanto, não pode se dar ao luxo de esquecer ou deixar adormecer as velhas e atuais questões da violência sofrida pelos irmãos negros. 

No hemisfério norte, um pouquinho acima de nós - acima de tudo e todos, não é? - o tio Sam também tem vozes dissonantes. James Baldwin foi um escritor que usou a palavra como denúncia. Sua atualidade é aterrorizante. Quantas voltas demos e paramos no mesmo lugar?


As fotos postadas nesse blog são de minha autoria ou são retiradas de um site de imagens para uso livre. Nesse caso, a foto é de Liam Edwards.


Se a rua Beale falasse é um romance no qual a narradora, Tish, está grávida de seu namorado, Fonny. Ele está preso por conta de um falso testemunho de uma vítima de estupro - coagida pela polícia. A cidade delineada por Baldwin e comunicada pelas palavras de Tish é totalmente inimiga dos negros. A estrutura social é feita para prendê-los:

Agora, posso dizer, porque não tenho a menor dúvida, que a cidade não nos amava. Olhavam para nós como se fôssemos zebras - e, você sabe, algumas pessoas gostam de zebras e outras não. Mas ninguém nunca pergunta o que a zebra acha. 

É verdade, não conheço muitas outras cidades, só Filadélfia e Albany, mas juro que Nova York deve ser a cidade mais feia e suja do mundo. Deve ter os edifícios mais feios e os moradores mais desagradáveis. Com certeza tem os piores policiais. Se existe algum lugar pior, deve ser tão perto do inferno que dá para sentir o cheiro das pessoas sendo fritas. E, pensando bem, esse é exatamente o cheiro de Nova York no verão (BALDWIN, 2019, n/p). 

Essa postagem tem dois objetivos principais: trazer ao conhecimento do público algumas obras que tratem de temáticas urgentes (antifascismo, antirracismo), obras que possuam vozes diferentes da sistemática voz do homem branco de classe média e que não deve (mais) ser a única dominante. Além disso, lembrar a importância de se colocar as vozes negras em evidência permanente. Não há outra questão mais urgente e nem motivos para que assim não seja. 


Leituras adicionais indicadas: 

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, Maya Angelou
O olho mais azul, Toni Morrison 
O caminho de casa, Yaa Giasi
Mulheres, raça e classe, Angela Davis


Espero que tenham curtido essa matéria, lembrando que o episódio 7 do podcast We can be readers será sobre literatura escrita por mulheres negras. Vai ao ar dia 12 de junho, fiquem ligados!

Instagram e twitter: @wecanbereaders 

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