A roupa nova do imperador nunca fica velha

Por We can be readers - maio 19, 2020

Que a pandemia feat. trabalho em casa feat. escândalos (previsíveis) do governo podem atrapalhar a nossa concentração ultimamente  tá mais do que justificado. Comentei algumas leituras em andamento em post específico sobre quarentena e produtividade e uma coisa que tem me ajudado muito a enfrentar as situações derradeiras da vida é apostar em releituras. 

Consegui terminar O Continente I e já comecei o segundo. Entre uma montanha de vídeoaulas e planejamentos de conteúdo consigo descarregar um pouco a tensão ali, na linguagem familiar e espetacular do Erico Verissimo, com certeza um dos maiores escritores que esse país já teve - e merece ser mais aclamado, mais lido. 

Pensando nesses retornos - super válidos e  muitas vezes adiados porque a gente não quer "desperdiçar o tempo que poderia ser dedicado a alguma leitura nova" - resolvi falar um pouquinho sobre um conto que eu li milhares de vezes na infância. Ok, milhares é um pouco exagero, mas, pensando bem, não sei se está tão longe disso. 

"A roupa nova do imperador", do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, foi uma história que marcou muito a minha vida. Está bem, eu li muito "A sereiazinha", "A Pastora e o Limpador de Chaminés", "A pequena vendedora de fósforos", entre  outros. Mas "A roupa nova do imperador" me fascinava pelo absurdo que propunha - como que ninguém ia lá dizer para o imperador - "MANO, NÃO TEM TECIDO LÁ NOS TEARES! TE LIGA, BROTHER!" 

A real é que o conto aborda muito esse aspecto humano de querer seguir os pares - se não me engano, em inglês isso se chama peer pressure: a gente vai na onda das pessoas para não parecermos burros, antiquados ou o que seja.

O ser humano é um ser social - até aqui nenhuma novidade. Se buscarmos referências sobre as origens do humano e seu comportamento, como em O paradigma perdido, de Edgar Morin, A conquista social da terra, de Edward O. Wilson ou então em Sapiens, de Yuval Noah Harari, veremos que esse aspecto - o de sermos sociais e de nos agruparmos por afinidades de forma muito rápida - é predominante. 

O conto de Andersen é exatamente sobre isso. Mexe com relações de poder - afinal, quem vai contrariar o imperador? - mexe com o ego dos personagens, os quais não querem parecer "burros" diante das outras pessoas. 

Vamos ao resuminho: imperador louco por roupas não pode aparecer no rolê vestido de qualquer jeito. Seu traje deve ser simplesmente baphônico.  (Ele provavelmente acharia um absurdo repetir o outfit, como faz a Kate Middleton). Esse imperador curte estar na moda e gasta todo seu dinheiro com roupas estilosas, apenas isso chama a atenção dele. Para provar o quanto ele era fashionholic (essa palavra existe, achei que tava inventando), vou transcrever um trecho bem legal aqui:

"Possuía um traje para cada hora do dia; e em vez de dizerem (como de hábito se diz a respeito de qualquer outro rei ou imperador): 'Ele está na Sala do Conselho', as pessoas sempre diziam: 'Ele está no quarto de vestir'" (ANDERSEN, 1992, p. 139). 

A cidade governada pelo imperador era muito animada, as pessoas viviam muito felizes ali. Muitos viajantes também eram atraídos para o local. Até que um dia dois impostores - faziam o papel de tecelões - visitaram a cidade e ofereceram seus serviços ao imperador. Sua grande novidade era um tecido invisível aos olhos de todos aqueles que fossem estúpidos ou indignos de seu cargo. 

É claro que o monarca não poderia ficar sem tamanho furor do mundo da moda em seu guarda-roupas. Pagou rios de dinheiro, investiu em seda e ouro para que os dois salafrários pudessem trabalhar nessa roupa especialíssima. 

Com os teares vazios e uma atuação impecável de que estavam trabalhando arduamente, os dois patifes conseguiram - pelo argumento inicial da invisibilidade do tecido para quem não é inteligente - enganar os oficiais enviados pelo imperador para a fiscalização do trabalho. Todos os que chegavam no local onde estavam os teares com tecidos incríveis e cores vibrantes simplesmente não se sentiam à vontade para dizer que nada enxergavam, pois isso significaria colocar em xeque sua capacidade cognitiva assim como a sua dignidade dentro de sua função. 

Quando o imperador vai ele mesmo conferir o trabalho dos dois homens, também se depara com o mesmo dilema dos seus funcionários: não havia nada para ver.  Diante disso, reflete: "'O quê?', pensou o imperador. 'Não vejo nada! Isso é horrível! Serei acaso algum idiota, ou talvez indigno de ser imperador? Não podia acontecer-me nada pior!'" (ANDERSEN, 1992, p. 142). 

Se você não quer spoiler, abandone esse post aqui! :) 



Incapaz de admitir que não estava vendo o tecido, o imperador aceita desfilar com a "roupa nova". O imperador caminha totalmente nu diante da população. Uma criança atenta para o fato de que ele está pelado e, em seguida, o povo inteiro a acompanha: "O imperador está nu!". 

O soberano sabia que era verdade, mas não titubeou. Seguiu seu caminho, pois "o desfile tem de continuar".  Afinal, seria muito ultrajante para o imperador ouvir a voz do povo em um momento como aquele. 

O povo, à margem da vida luxuosa da majestade, cujos gastos incluíam tecidos invisíveis para toda a sorte de trouxas, não hesitou em falar aquilo que viu. Não havia medo de parecer mais ou menos inteligente. Havia apenas a necessidade de apontar a nudez de uma figura tão importante quanto o seu governante. 

Ler e pensar: reflexões para "A roupa nova do imperador"


O imperador se deixou levar pela vaidade de possuir algo novo especialmente para si e, de brinde, capaz de revelar os "indignos" dos cargos de seu governo;

Os funcionários do imperador obviamente não queriam parecer tolos, muito menos indignos do cargo que ocupavam. Ou seja, os dois safados do conto mexeram com o ego dessas pessoas, pois ninguém quer parecer burro. [Aí depende, né. Hoje em dia tem bastante gente orgulhosa de sua burrice] 

A criança grita "O imperador está nu!", revelando a espontaneidade das crianças em dizer aquilo que veem, sem filtro, sem receio. O povo, livre de qualquer julgamento, também não teve problemas em declarar a verdade sobre aquele evento: tu tá pelado, mano! Te liga!

O monarca, mesmo sabendo que fora enganado pelos dois projetos de tecelões, segue o baile. "Ok, me enganaram, mas agora não posso dar razão para o povo e perder a credibilidade na frente dos meus subordinados", é basicamente essa a mensagem. 

Fica o questionamento: estamos enxergando a nudez do imperador ou  estamos fingindo que enxergamos certas coisas só para manter nossa "dignidade intelectual"? 

Se por acaso encontrar algum imperador andando nu por aí: não se omita. 

Até a próxima, amiguex! 







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