Para ler poesia, leia poesia

Por We can be readers - julho 02, 2020

Oi, gente!

Estou aqui para falar de um tema muito caro para mim. Vou tentar ser bem sintética para que possamos ir direto ao que interessa.

Não faz tanto tempo assim que me apaixonei por poesia. Foi em 2012, numa disciplina do mestrado, ministrada pela prof. Drª. Raquel Rolando Souza, que se tornou minha orientadora de mestrado e doutorado depois disso. 

Nunca pretendi trabalhar com poesia, mas minha ideia sobre isso era completamente equivocada. "Eu não quero contar verso e marcar isso e aquilo". A noção de que trabalhar com poema é (só) abrir suas entranhas da forma me apavorava. A Raquel me ensinou que podemos adotar outra via mais leve, uma via que vai ter, inevitavelmente em alguns momentos a contagem dos versos e outros detalhes mais pragmáticos, mas que pode ser percorrida com a substância poética. Uma coisa é outra, forma é conteúdo. 

Resumo da história: pesquisei no mestrado e no doutorado a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Para quem nem queria se envolver demais eu já estava até o pescoço. 

A partir desse momento, comecei a ler poesia com muito mais frequência e cada dia acredito mais e mais no poder da poesia e o quanto ainda é preciso puxá-la do alto da torre em que a colocaram para o nosso chão. A poesia começa na batida do coração. Na batida de um tambor, nas canções ritualísticas, nas canções em homenagem ao deus da boa colheita. A poesia é algo que pertence ao nosso ritmo interno. Por que raios ela foi parar em um mundo tão distante? 

Não só a poesia como a literatura, a arte de modo geral, foi transferida para esse plano mais acima, e seus únicos participantes são os intelectuais das Letras ou do Direito ou de qualquer outra elite. Eu sempre desconfio de uma pessoa que quer "acorrentar" a literatura em uma determinada leitura, ou, pior, desconsiderar a literatura que circula com maior facilidade porque não tem valor. Valor para quem? Sei lá, é um discurso elitista demais. 

Para mim um texto literário é ruim quando é mal escrito. E por mal escrito eu penso em um jeito incoerente de escrever, um jeito desleixado, sabe? Do contrário, sempre vou perceber um texto como bom ou ruim de acordo com a minha experiência de vida, com minhas expectativas de leitura. Tem um monte de livro que eu não gosto, mas sei que foram bem redigidos. Como reflexão, sugiro a leitura do texto "O direito à literatura", de Antonio Candido.

Pensando que o amor pela poesia é algo possível de ser cultivado e estimulado, vou deixar uns poemas aqui e comentá-los brevemente, para que vocês possam apreciar os versos e construir suas próprias impressões sobre eles. "O que é preciso para ler poesia?", perguntam às vezes. Eu digo: "leia"! 


Gostaria primeiro de apresentar um poema de Orides Fontela, poeta de inexplicável magnitude (para mim), formada em filosofia, professora, consagrada pelo Jabuti de poesia em 1983 pelo livro Alba  e que, apesar de tudo, morreu de tuberculose em um hospital e quase é tida como indigente. Eu não sei muita coisa sobre a vida de Orides Fontela, embora seja possível assistir essa entrevista no Jô e o documentário A um passo do pássaro, dirigido por Ivan Marques. 

Dito isso, vamos ao poema.

Teologia II

Deus existir
ou não: o mesmo
escândalo. 

(FONTELA, 2015, 412) 


Esse texto faz parte dos poemas inéditos publicados junto com a Poesia completa de Orides Fontela, pela editora Hedra. 

Peguei um poema super sintético, no qual esse eu-lírico reflete sobre a teologia e nos deixa exatamente no mesmo lugar, o mesmo escândalo ali mencionado. Deveríamos, a partir da inevitabilidade do escândalo, deixar de debater essa questão e partir para outras divagações? A mim, parece ser essa a vibe. Discutir a existência ou não de um Deus leva, a qualquer dos lados, ao mesmo resultado. 

Repare no título, "Teologia II". Saí em busca da primeira teologia, presente no livro Teia (1996). Reparem: 

Teologia

Não sou um deus, Graças a todos
os deuses!
Sou carne viva e
sal. Posso morrer. 

(FONTELA, 2015, p. 344) 

A partir dessas duas peças, notamos uma visão muito aberta desse sujeito poético de Orides Fontela. A poeta está aberta à pluralidade quando evoca "deuses". Em "Teologia II" a unificação de um Deus parece não importar, pois, no fim das contas dá na mesma. Ainda, trazer ao poema essa substância "carne viva e sal" além do fim inevitável da morte, o eu-lírico se contrapõe à substância dos deuses - que é não ser carne, sal e morte.

Outra poeta que eu gosto bastante, ainda em atividade, é Adília Lopes, nascida em Lisboa, Portugal. Os poemas que vou compartilhar com vocês estão na antologia Aqui estão as minhas contas, organizada por Sofia de Souza Silva, pela editora Bazar do Tempo. 

O meu tempo (1960-1993)

Agora as pessoas
não sabem morrer
estar doentes
sofrer
ter prazer
tocar-se
dantes também não

(LOPES, 2019, p. 34)

O poema faz parte do livro O peixe na água, de 1993. É interessante pensar como o eu-lírico cria uma expectativa de tempos diferentes. Um antes de jeito tal e um depois oposto. Porém, a surpresa é que o "meu tempo" dessa voz poética nada mais é do que um tempo sempre existente. As pessoas não sabem fazer as coisas agora e antes, dantes, também não sabiam. Reparem nessas ocasiões de sabedoria: a doença, o sofrer, o prazer e o tocar-se. Todas essas questões estão no âmago do ser humano e, apesar de tantos acontecimentos desastrosos ao longo de nossa trágica história enquanto espécie, continuamos realizando essas tarefas da mesma maneira. Não sabendo adoecer, sofrer, sentir prazer e tocar-nos. 

Originalmente no livro Irmã barata, irmã batata (2000), um poema concentrado em apenas um verso:

Sofrer é nojento. Não sofrer também pode ser nojento. 

(LOPES, 2019, p. 77)


Para encerrar, um poema da Adília Lopes, originalmente no livro César a César (2003), que eu adoro e sempre compartilho nas outras redes:

Anti-nazi       

A limpeza
pode ser
pior
que a porcaria

A ordem
pode ser
a maior
desordem

(LOPES, 2019, p. 93)

O que eu mais gosto nesse poema é justamente colocar em relação e reflexão essas duas atitudes paradoxais: limpeza e porcaria, ordem e desordem. Não precisamos fazer muito esforço mental para relembrar o que os nazistas fizeram ao tentar "limpar" a Alemanha. Ou o que acontece no Brasil todos os dias, em um governo cuja finalidade é instaurar a "ordem e o progresso", pautando suas atitudes nos bons costumes. A desordem que encerra o poema é identificada nos nossos dias. 

Vou tentar fazer mais posts desse estilo, acho que muita gente se interessa por poesia e acaba não buscando por causa do "medo" e da "dificuldade" da poesia. É só uma questão de se acostumar com a verticalidade do poema. 

Obrigada pela companhia, até o próximo post! :) 

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1 comentários

  1. Lindíssima a tua reflexão, Su! Quando li o título, lembrei-me da Raquel e pimba, tu também! Hahaha, que pessoa que salva vidas, essa Raquel... Beijinhos.

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