Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro

Por We can be readers - janeiro 12, 2021

Olá, arrombadinhos do meu Brasil! Mais um dia sentindo que a esperança se esvai do  corpo? Mundo inteiro se vacinando e a gente ainda sem data, hora, seringa? Emocionante, né? Mas era uma escolha MUITO DIFÍCIL...

Comecei nesse clima de desgraça total, pois queria falar sobre um livro extremamente triste e sofrido, e ia sugerir: não leia num momento ruim! Espere estar de bem com a vida e, aí sim, encare esse livro do Kazuo Ishiguro. Só que não dá. Se a gente for esperar estar de bem com a vida, dentro desse mar de merda no qual estamos, não leremos mais nada, estaremos imobilizados, perplexos, anestesiados. 

Photo by: Michael Olsen (Unsplash - free images)

Primeiro, uma resumida sem spoilers.

Quando o Kazuo Ishiguro ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 2017, pela obra Vestígios do dia (The remains of the day), saí catando todos os livros dele - eu sou bem Nobel Prize bitch. Acho que eu já tinha O gigante enterrado salvo no meu Kindle, mas resolvi pegar vários outros e, de repente, tentar. 

Não me abandone jamais, no original, Never let me go (que acho bonito, sonoro - ele tem bom gosto para títulos!), me chamou a atenção, embora eu não tivesse lido resenha ou sinopse. Naquele momento, não consegui sentir vontade de avançar. Foi coisa de ler um capítulo só e abandonar o barco.

Apenas no início desse ano abri Não me abandone jamais e terminei em poucos dias. Motivada pela resenha de um amigo, no Goodreads, e pela sinopse também desse site, é que encontrei o ímpeto ausente da primeira vez. 

Começar a história sem saber absolutamente nada pode ser bom ou ruim. No meu caso, não saber foi um pouco desanimador (daquela primeira vez, movida pelo Nobel). Não tinha ideia de que se tratava de um romance distópico (porque é), por vezes caracterizado como ficção científica (o que, ao meu ver, até poderia rolar, mas não no sentido ao qual estamos habituados a pensar o sci-fi). Começar por esse lado já situa o leitor de que não encontraremos uma história normal, habitual, corriqueira (usei muitas palavras, pois não sei exatamente como caracterizar).  A partir daqui, pode haver spoilers - mas só vou resumir o que já está na sinopse. Ou seja, é um spoiler leve, um spoiler que, de fato, faz parte da síntese do livro.

Photo by Josh Nutall (Unsplash - free images)

Distópico, o romance está centrado nas lembranças de Kathy H., sobre esse local, Hailsham, basicamente um "reservatório de clones". Os "alunos" são criaturas moldadas para servir, futuramente, como de peças de reposição. Kathy cresce em Hailsham e toda sua perspectiva de vida é extraída dali. Pensei, por vezes, "como que uma pessoa que nasce num lugar desses consegue desenvolver um tipo de consciência sobre si e sobre o mundo, como surgiu essa complexidade de sentimentos, já que nasceram para ser peças"... a arte tem aqui papel fundamental. Ainda, eles não eram totalmente ignorantes de seu destino. Sabiam que, um dia, seriam cuidadores e doadores. 

Kathy H. coloca essa rememoração para funcionar, pois está prestes a completar sua carreira como cuidadora. Isso significa, depois caímos na real, que ela será doadora muito em breve. O exercício de compreensão, a partir da recuperação da memória, está dividido em três partes: a infância, a adolescência e a fase adulta. 

Falei que a arte possuía um papel fundamental na questão da complexidade dos sentimentos e do entendimento de Kathy, mesmo dentro de uma estrutura tão... desumanizada. Em Hailsham, os "alunos" (aspas necessárias!) eram mantidos ocupados, estudando e produzindo arte, fazendo exames regularmente, preparando-os para o momento da vida "lá fora". Kathy tem dois amigos bastante especiais, Ruth e Tommy, e é com eles que ela vai se relacionar (mais) ao longo do livro.

"Cuidadores", "doadores", os "possíveis" (que são as pessoas que serviram de molde para os clones) e "concluir" (morrer) faz parte do vocabulário específico desse novo modo de viver: criar seres clonados para ter, à disposição, órgãos para salvar vidas.

Photo by Annie Spratt (Unsplash - free images)

Por termos a perspectiva de Kathy, a nossa compreensão desse mundo é a dela, sobre toda essa situação espantosa. Apenas recolhendo os cacos do passado, analisando em retrospecto certas falas, certas atitudes, é que  Kathy vai chegar a uma triste verdade sobre a sua vida e a vida de todos os que foram clonados, existindo apenas para servir a outro propósito, quase destituídos de humanidade. 

Os episódios narrados por Kathy não são impactantes, pelo menos não no sentido daquelas reviravoltas apoteóticas que alguns livros tentam dar. Ela está vivendo a vidinha dela, em Hailsham, brigando com alguns amigos, aproximando-se de outros, tentando entender o que tal pessoa quis dizer, qual a verdade deve ser descoberta e tal. 

Na segunda etapa, adolescência, os jovens de Hailsham vão para o Casario, também uma espécie de depósito, mas eles convivem com clones de outros centros. Aí meio que começam a trocar algumas informações, perceber algumas coisas que ocorrem ali, o comportamento esquisito (o que não é esquisito nessa história?) dos veteranos que, em breve, partem para ser cuidadores. Nessa fase, Ruth e Tommy começam um relacionamento e Kathy segue amiga dos dois, como sempre fora. 

A terceira, e última, etapa foca na vida adulta de Kathy e seu trabalho como cuidadora de Ruth e, depois, de Tommy. É, justamente, a união das peças. A verdade que desaba sobre os ombros de Kathy e Tommy é quase insustentável e eu me senti muito sem chão. Repito: as coisas não ocorrem de modo apoteótico. Acho que é a banalidade desse fato (existirem clones como se fossem fábricas de pecinhas) que torna tudo tão cruel e tudo tão... despido de qualquer ilusão. 

Photo by Todd Trapani (Unsplash - free images)
Talvez, uma das coisas mais chocantes seja o fato de que o clone não se torna um doador de uma só vez. A pessoa clonada pode passar por até quatro etapas de doação. O que é retirado a cada etapa, no entanto, não é mencionado. Nem acredito que faça tanta diferença saber ou não.
*

É muito bonita a passagem em que o título do livro, Never let me go, ganha toda a sua força de ser e significa tudo. Ao som dessa música, Kathy dança, abraçada ao travesseiro, imaginando um sentido completamente diferente para a letra, enquanto uma mulher importante para a manutenção de Hailsham a observa e se emociona. Paro por aqui para não estragar a experiência de quem for ler. 

Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, a música, a capa, o álbum, foi tudo inventado para o livro? Encontrei essa reportagem (de alguém que também catou Judy, assim como eu) e fiquei UAU. Judy Bridgewater existe apenas no universo ficcional de Ishiguro.

A fita cassete de Judy Bridgewater é um objeto muito importante para a história. Na real, não encontrei pontas soltas, o que é louvável, já que essa recuperação da memória não se dá de forma linear.

Há romance, mas nada convencional. O título pode enganar nesse sentido, pode indicar que é uma história romântica ao extremo, de algum parceiro desesperado para recuperar seu crush e pedir "não me abandone jamais".

Importante mencionar que o livro possui um final bem amarrado e condizente com a história, embora muito triste e desolador. 

É um livro que faz a gente pensar muito sobre a vida, mais do que sobre ética, até - causando certo estranhamento.

Os clones não diferem em nada da gente, creio que isso nos aproxima tanto e nos entristece, em certos momentos. Não doamos órgãos para outras pessoas, mas doamos nossa energia, nosso tempo, nossa motivação. Vendemos nossos sonhos a preço de banana. Como indivíduos e como sociedade. 

Não me abandone jamais, para além do bizarro do que pode ser o projeto da humanidade, também é uma história de esperança. Uma esperança que se prova inútil, mas ainda assim...

Preciso compartilhar um (dos vários) trecho muito emocionante. Esse livro destrói cada pecinha da gente na base da marretada... 

Vamos lá:

Mas algo se perdera para sempre e os desenhos davam a impressão de ser fruto de uma labuta intensa, quase como se tivessem sido copiados. E assim foi que aquele sentimento voltou outra vez, mesmo que eu tentasse mantê-lo a distância: o sentimento de que estávamos fazendo aquilo tudo tarde demais; que já tinha existido o momento certo, que nós deixamos passar, e que havia algo de ridículo, até mesmo censurável, no modo como estávamos pensando e planejando (ISHIGURO, 2005, n/p).

Estou extremamente afetada por essa história. Acho que é pelo fato de Ishiguro não pregar peças na gente, não querer causar a lacração da narrativa contemporânea. Não há artifícios: as coisas são aquilo ali mesmo, só demoramos um pouco a descobrir, pois descobrimos junto com a Kathy.

Por hoje é só, pessoal. Até outro dia! 


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