O ano do Macaco, Patti Smith

Por We can be readers - janeiro 04, 2021

Olá, leitores! Espero que estejam todos bem nesse início de ano meio "blé". Com o fuzuê habitual do desgoverno, sem muitos de nossos direitos básicos assegurados, corrupção rolando solta e a promessa da vacina nunca se concretiza... Tudo bem, pelo menos "tiramos o PT". Vida que segue!

Desde a gravação do último episódio do podcast We can be readers em 2020, aproveitei para finalizar o caos do ano letivo e depois só descansei. Fiz vários nada, maratonei Friends enquanto deu na Netflix, li bastante coisa (trechos de livros, poemas), li livros inteiros e eis-me aqui, nessa primeira segunda-feira de 2021 para falar da primeira leitura do ano, entre outras coisas.

A Lidiane Dutra, ilustradoríssima da arte desse blog e podcast, desde 2018 ilustra  os arcanos regentes de cada ano; em 2021, temos O Papa/O Sumo Sacerdote/O Hierofante. A ilustração está linda e sugiro que cliquem nesse link para conferir como ela interpretou a carta e os materiais utilizados para compor o desenho. 

Acho muito interessante toda a mística do tarot (a partir do contato com obras de Gilbert Durand - As estruturas antropológicas do imaginário - e também com O castelo dos destinos cruzados, do Italo Calvino). Sinto que perdi muita coisa desses dois livros por não saber, exatamente, todo o universo simbólico. Lembrando que o livro do Durand não é sobre tarot, ele apenas se utiliza de determinados conceitos para entender o imaginário. 

Tudo isso para falar da simbologia das coisas, da mística, do significado que atribuímos a eventos caóticos no universo, mas lemos e classificamos prontamente. Seres humanos não são bons em lidar com o desconhecido e com o imprevisto, por isso é sempre bom estar alerta. 

2021, no ano chinês, é o ano do Boi e começa no dia 3 de fevereiro. Bem, isso significa (de acordo com o site Personare) que é um ano marcado pelo trabalho, dedicação e esforços para realizar tarefas do cotidiano. Será preciso "ralar muito" para colher os frutos - nada que a gente já não faça desde...sempre.  

Pesquisando sobre o ano do Macaco (nuns sites aleatórios de horóscopo), encontrei que esse animal representa uma fluidez: inteligente, inventivo e espirituoso, mas também estrategista, oportunista e nem sempre confiável. 

Falando sobre o "sentido" das coisas, o "significado" místico, achei muito interessante ter começado as leituras de 2021 com  O ano do Macaco, da Patti Smith. 

Eu sou fã da escrita dela desde que recebi o kit da Tag - Experiências Literárias em março de 2018 com Só garotos, indicado pela escritora gaúcha Natalia Borges Polesso. Confesso que, quando abri a caixinha, fiquei: "ai, será?" Foi uma das experiências mais legais de leitura dos últimos tempos. A Patti Smith transforma qualquer frase cotidiana em poesia. 



Andemos. Eu comprei o exemplar de O Ano do Macaco em novembro de 2019 (eu guardo a nota fiscal no final do livro só pra ter o registro da data) e já havia tentado começar a leitura várias vezes, mas não rolava. Estava até duvidando se era digna de Patti Smith, tamanha heresia. A questão é: há momento para tudo e para livros não é diferente. Independente do número de páginas, do amor que você sente pela escritora, você pode, sim, encontrar barreiras e encalhar. 

Eu não estava sabendo ler O Ano do Macaco, essa é a verdade. Não era um relato da escritora aos moldes dos dois livros que havia lido anteriormente.

Prestes a completar 70 anos, justamente sob o signo do Macaco, Patti se depara com o balanço crucial de sua vida, enquanto um grande amigo está no hospital, em coma, e outro está impedido de fazer atividades triviais do cotidiano, precisando de cuidados o tempo inteiro. 

A narrativa memorialística de Patti, nesse livro, é regida sob a "carta" do sonho. Ou, mais especificamente, a "placa" do sonho. Hospedada no Dream Inn, a rockeira tem sérias dificuldades em separar sonho da realidade e, no fim, tudo fica uma mistura e tudo é, portanto, real. 


Quem ama Alice no País das Maravilhas também vai amar esse livro, pois são muitas as referências e ficamos ansiosos para saber como a nossa Patti das Maravilhas vai se sair nessa aventura. Ela relata eventos triviais: viagens, o que ela quer comer no café da manhã, os livros que vai levar para seu próximo destino, sua visita à biblioteca pessoal de Fernando Pessoa, enquanto reflete sobre o tempo escorrendo mais rápido entre seus dedos. No meio de tudo isso, ela ainda compartilha belas fotos, assim como fez em Só garotos e Linha M

Grifei muitos trechos do livro, como de costume, e não posso deixar de compartilhar alguns belos momentos com vocês:

Passando lentamente pela placa, uma curiosa série de frases veio em alta velocidade e vasculhei os bolsos em busca de um lápis, pensando em anotar aquilo. Pássaros cinzentos sobrevoam a cidade polvilhada de escuridão! Prados errantes enfeitados com névoa! Um palácio mítico que era ainda uma floresta! Folhas que são apenas folhas. É a síndrome do poeta esvaziado, que precisa arrancar inspiração do ar errático, como Jean Marais no Orfeu de Cocteau, trancado numa garagem barroca nos arredores de Paris, em um Renault maltratado, mudando a frequência do rádio e rabiscando fragmentos em pedaços de papel - uma gota de água contém o mundo etc. (SMITH, 2019, p. 13). 

Algumas páginas depois...

Um casal apaixonado passou por mim, e de uma hora para outra a placa era só uma simples placa era só uma simples placa, muda e impenetrável. Parei na frente dela para avaliar a situação. O problema dos sonhos, fiquei pensando, é que uma pessoa pode ser arrastada para um mistério que não é de forma alguma um mistério, dando origem a observações absurdas e a um discurso incapaz de produzir uma mísera conclusão baseada na realidade. Tudo aquilo remete às brincadeiras da Alice e do Chapeleiro Maluco. [...] Sam Shepard falava bastante da viagem solitária para Uluru e de como um dia a gente poderia ir junto, prolongando a estadia em cidades dos arredores, atravessando o interior, margeando as bordas das planícies pontuadas de spinifex. Mas Sam tinha sido afetado pela esclerose lateral, e conforme seus desafios físicos aumentavam, todos os planos trançados de um jeito frouxo se desfizeram. Me perguntei se o destino, assumindo a voz da placa, estava sugerindo que eu ainda ia poder ver o monólito vermelho com meus próprios olhos, sem dúvida levando Sam comigo, seguro em algum lugar incerto do meu ser (SMITH, 2019, p. 23-24). 

Muitas coisas acontecem nesse ano tão decisivo para Patti. Ela não deixa de mencionar o pavor diante das eleições desastrosas de 2016, que colocaram Trump no poder. Sem mencionar o nome da laranja demonhada, ela faz uma análise muito interessante sobre tudo o que está acontecendo. Parece um pouco com as coisas que pensamos hoje, em 2021, coisas que começamos a pensar quando o nosso castelo de cartas começou a ruir em 2016. 

Felizmente, Patti Smith ainda está nesse universo com a gente, ofertando sua arte, sua poesia e sensibilidade. Sempre recomendo o instagram dela, @thisispattismith. Ela é o ser mais sensível e gentil que você vai encontrar por lá. 

Em Só garotos, Patti relata sua história de amor e amizade com o fotógrafo Robert Mapplethorpe. Com um preconceito muito besta, achei que fosse mais um livro sobre dois jovens que se drogam muito e encontram seu lugar ao sol no mundo da arte. Quanto engano de minha parte. Mais uma vez, a morte coloca Patti diante desse compromisso, energia, obrigação pessoal - sei lá como se chama - de colocar memórias no papel, e nos beneficiamos muito disso. Vamos de excerto marcante, episódio em que o pai de Patti leva a família para um passeio no Museu de Arte da Filadélfia:

Meu pai admirou o virtuosismo do desenho e o simbolismo das obras de Salvador Dalí, mas não viu mérito nenhum em Picasso, o que levou à nossa primeira desavença séria. Minha mãe ficou ocupada cercando meus irmãos, que deslizavam pelo piso liso de mármore. Tenho certeza de que, enquanto descíamos a grande escadaria, eu parecia ser a mesma de sempre, uma menina embasbacada de doze anos, toda braços e pernas. Mas secretamente eu sabia que havia sido transformada, comovida pela revelação de que os seres humanos criavam arte, de que ser artista era ver o que os outros não conseguiam ver (SMITH, 2018, p. 22).

Sinto, na escrita de Patti sobre Robert, um respeito enorme e um trabalho que dignifica a figura que ele foi, a arte que produziu:

Robert confiava na lei da empatia, segundo a qual seria capaz, por sua vontade, de se transferir para um objeto ou uma obra de arte, e assim influenciar o mundo externo. Ele não se sentia redimido pelo trabalho que fazia. Não buscava redenção. Procurava ver o que os outros não viam, a projeção de sua imaginação (SMITH, 2018, p. 72). 


Acho que quando leio as coisas da Patti, porque são coisas memorialísticas, penso na importância do registro pessoal e o quanto ela transmite essa ideia de "gente comum" quando conta suas aventuras. São coisas muito íntimas, muito do lado de dentro mesmo, coisas da vida de uma pessoa que lê, come, assiste série de tevê, conversa com placas de hotéis e reflete sobre a finitude. 

Só mais um trecho e me despeço:

Como a gente explica isso, a não ser falando a verdade? Sam Shepard não ia escalar, não fisicamente, os degraus de uma pirâmide maia ou galgar o dorso arqueado de uma montanha sagrada. Em vez disso, ele ia deslizar com habilidade para o grande sono, como as crianças da cidade morta espalham folhas de papel vegetal em cima de montes de corpos correndo em direção ao paraíso. Você chega lá mais rápido deslizando num papel vegetal, toda criança sabe disso. Isso é o que eu sei. Sam está morto. Meu irmão está morto. Minha mãe está morta. Meu pai está morto. Meu marido está morto. Meu gato está morto. E meu cachorro que morreu em 1957 continua morto. E  ainda assim eu continuo achando que alguma coisa maravilhosa está para acontecer (SMITH, 2019, p.156).

Fiz uma seleção de 11 livros que desejo ler em 2021. Comecei por um que nem nessa seleção estava. Não acredito em deus para ver esse "acaso" como algo divino, mas vejo como algo de momento; pensar o começo de algo, a passagem do tempo e tantas perdas que ocorreram em 2020 me empurraram para o sonho descrito por Patti em O Ano do Macaco

Volto para comentar a listinha dos selecionados em outro post. 

Se cuidem, o coronavírus ainda é - infelizmente - parte de nossa realidade. 

Segue lá no Instagram: @wecanbereaders 

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2 comentários

  1. Honrada com a menção à minha humilde ilustra no post sobre Patti Smith, essa deusa que anda entre nós <3

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