Das voltas que não deveriam existir e das voltas que valem a pena

Por We can be readers - fevereiro 19, 2021

[Edit]: No dia dessa publicação, à noite, Dudu Milk Azedo decretou suspensão das aulas presenciais. Portanto, os anseios daqui foram amenizados (por enquanto). 


Olá. Sou uma professora cansada. Exausta. Infeliz. O retorno ao regime semipresencial é uma tragédia anunciada, mas quem vai ouvir? O negócio é dar a cara a tapa e torcer para que a coisa não prossiga a ponto de fazer mais vítimas do que já vai fazer. 

Retornar à sala de aula é das coisas mais bizarras que se pode imaginar num cenário como esse. O Brasil registra, por alto, umas 1000 mortes por dia; isso está longe de ser um caso controlado. Pelo contrário, está muito pior do que há 1 ano. Temos novas variantes do vírus, a vacina vem a conta-gotas, profissionais da saúde aplicando vacina de vento, fodendo toda uma credibilidade da área, e o buraco só afunda e quando for mais fundo é só abrir o alçapão que tem mais descida. 

Tirando todo o quesito risco de contrair o vírus, me emputece a forma de colocar crianças em sala de aula para, simplesmente, só estarem ali. A dinâmica continuará sendo uma professora em frente ao computador, interagindo com um público online e muito precariamente com o público presencial. Porém, os alunos não poderão mais enxergar as minhas expressões faciais, pois estarei de máscara. Conseguirão me ouvir? Não sei. A gente só vai descobrir na prática. 

A escola é um espaço de socialização. Isso inclui abraçar, chegar perto, explicar, pegar na mão e escrever junto se for o caso. Tudo o que foge disso deve ser muito bem pensado, de forma a não aniquilar a experiência pedagógica. 

Esse retorno às aulas é um retorno a um período idílico no qual o covid não existia. Voltar "com todos os cuidados" é, ainda assim, colocar vidas em risco. Não é possível não ficar ansiosa com isso. Um recado importante é que os professores nunca estiveram de férias em 2020, apenas trabalharam (mais) de um jeito diferente e pelo mesmo valor - com a desvantagem de utilizar seus equipamentos, luz e internet para o andamento de um ano letivo falido. Aparentemente, uma pandemia não foi motivo o suficiente para que as coisas fossem pensadas em termos de qualidade no lugar da quantidade. 

Mas eu vim aqui falar de uma volta muito mais agradável e livre de qualquer risco. Estou falando do projeto  Volta literária, comandado pela Larissa Porciúncula. 

Uma enquete é lançada no perfil do ig e durante as próximas 24 horas os seguidores podem votar o país que desejam conhecer através da literatura. Após, a Larissa sugere dois autores do país escolhido e os seguidores votam o livro do mês. Em janeiro, fomos à Bélgica e lemos O tempo, esse grande escultor da Marguerite Yourcenar. 

Fevereiro foi o mês de visitar a Colômbia com o grande, maravilhoso, zero defeitos Gabriel García Márquez, com a obra Do amor e outros demônios - que ganhei no sorteio realizado no insta, taokey? Estou me sentindo a pessoa mais sortuda do universo por isso! 

Enfim, realizadas todas as votações (país e autor), a Lari propõe uma reunião para discutir a obra, anunciada pelo Instagram. Não participei da discussão do livro da Marguerite, mas pretendo estar na reunião do livro do Gabo!


O romance é esplêndido, devorei em um dia e tenho vontade de reler para participar da discussão.

A ficção foi desencadeada por um dado concreto: em 26 de novembro de 1949, o jornalista Gabo é enviado para o Convento Santa Clara, em Bogotá, para acompanhar o esvaziamento de criptas antigas, para ceder espaço para a construção de um hotel cinco estrelas. 

Diante de uma cena bisonha - montinhos de pó, joias, ossinhos de  bispos, abadessas e outras personalidades - Gabriel García Márquez é atraído por uma tumba em especial: a que tem por habitante uma menina marquesa cujos restos mortais são seus cabelos cor de cobre que se alongam por uma distância exorbitante. Na sua lápide, lia-se apenas o nome: Sierva María de Todos Los Àngeles. 

Essa imagem desencadeia  lembranças de Gabo a respeito de uma lenda contada por sua avó materna: uma marquesinha, no Caribe, é mordida por um cachorro e morre de raiva.  A menina lendária de 12 anos, que passa a operar milagres do além-mundo, também possuía uma cabeleira muito vasta, que se estendia tal como um vestido de noiva. O escritor jornalista tem aí sua notícia garantida e o mote para esse livro magnífico. 

Rejeitada pela mãe, negligenciada pelo pai, Sierva cresce entre as escravas e escravos da casa, aprendendo com eles os rituais religiosos, a linguagem africana e causando um certo temor em seus progenitores. 

Tão rejeitada é Sierva Maria que ela não habita um cômodo dentro da casa principal. O "crescer entre escravas" não é um eufemismo, é uma realidade. A menina ocupava um lugar no espaço dos empregados.

Um dia, numa das suas andanças com uma escrava, Sierva é mordida por um cachorro. A ferida deixada pelo animal é rapidamente esquecida, porém o cachorro tinha raiva e causou a morte de várias pessoas nas redondezas. Menos a morte de Sierva.

Isso abre espaço para intrigas, burburinhos, considerações de que Sierva possa ter sido possuída por um demônio, pois resiste à mordida mortal de um cão raivoso. (Isso e outras coisas de seu comportamento atípico que assombra as pessoas). 

O romance gira em torno dessa problemática: o relacionamento bizarro dos pais de Sierva, o seu comportamento duvidoso, a sua passagem pelo convento Santa Clara e o julgamento da Igreja em relação ao seu estado possessivo. 

Não quero ir além disso, pois creio que o desenrolar da história é um deleite incomunicável. Mas, como de praxe, deixo o trecho inspirador que pode vir a fisgar vocês!

Abrenuncio entendeu. Sempre achara que a perda da fé deixava uma cicatriz indelével, que impedia de esquecer. O que lhe parecia inconcebível era submeter uma filha ao castigo de exorcismos.

- Não há muita diferença em relação às feitiçarias dos negros - disse.

- É pior ainda, porque os negros não vão além de sacrificar galos, ao passo que o Santo Ofício se compraz em esquartejar inocentes no potro ou assá-los vivos num espetáculo público (MÁRQUEZ, 2020, p. 96).

Volto a frisar: o que foi dito aqui sobre o livro é uma parcela muito ínfima. Só o fato do esvaziamento das criptas e esse cabelão preso ao crânio de uma criança já são fascinantes, nem preciso me esforçar para convencer vocês a embarcar nessa. 

Gabo é espetacular. Foi um prazer dar uma volta literária com esse livro! 

Até a próxima, pessoal!

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