Giro de leituras capengas e outras preciosidades

Por We can be readers - julho 25, 2021

Hoje precisei admitir a mim mesma que estou passando por uma fase muito complicada no quesito leituras. Tá difícil manter a concentração em qualquer coisa que seja e tudo parece interessante, mas nem tanto. Resultado: começo a ler umas cinco coisas, mas apenas duas ou menos vão para frente. Isso causa uma angústia muito grande, pois é preciso decidir qual livro vai dar aquela facada final. Mesmo quando não dá, mesmo quando se torna meio cliché, qual livro nos faz seguir adiante, confortando um pouco nossos corações? 

Essa angústia de não ler é muito maior do que a de não criar, pois, para mim, uma coisa está total ligada à outra. Não consigo tirar algo do nada. Preciso estar lendo, aproveitando o meu tempo de vida em diminuir a pilha de livros para ler antes de morrer (elah é trágicah). 

Comecei a ler David Copperfield (Dickens) e, embora seja fascinante, sinto que vou demorar muito tempo ali. Porque meu lance tem mais a ver com a linguagem do Dickens do que descobrir exatamente o que aconteceu com David. 

Também está em aberto no meu Kindle o Pachinko (estou achando bem legal, quero voltar desde o capítulo um e ler só ele do início ao fim!), e Everything I never told you (Celeste Ng), pois vi alguém colocar no stories que não conseguia parar de ler. Está bem legal, mas não sei. Existe um jeito estadunidense de se contar histórias que me deixa meio bugada. Mas pode ser só uma questão da língua, pois existem alguns fenômenos parecidos na literatura brasileira contemporânea (o arranjo temporal da narrativa presente-passado-presente toda hora, por exemplo). 

Li esses dias o levinho Self-care, da Leigh Stein. O que mais gostei no livro foi aprender uma linguagem mais do mundo da internet. A história gira em torno de duas personagens, Maren e Devin, as idealizadoras de um aplicativo chamado Richual, no qual as mulheres podem compartilhar suas experiências de autocuidado e ter acesso a produtos. Aquela coisa: viver em torno do autocuidado gastando tempo em dinheiro se estressando com coisas que são vendidas como a sua paz. Bem clichezão, teve um final meio inesperado para mim, mas, como falei: é legal para aprender novas palavras e siglas de internet em inglês. Descobri esse livro em um podcast chamado Vox Quick Hits. Das várias seções do podcast, uma se chama Ask the book critic e lá estava Self-care

Depois de ficar abrindo livros ao acaso, chegando até a metade, ou então pegando alguns poemas para ler e evitar ansiedades fortes, posso dizer que essa semana tive êxito. Li dois livros do Gonçalo M. Tavares (a quantidade não quer dizer nada): O senhor Brecht e O senhor Calvino. Ambos fazem parte de uma série intitulada O Bairro. Nunca pesquisei de que se trata, qual livro foi lançado primeiro, o propósito: nada. Nem mesmo para esse post. Vou deixar esse garimpo para outro momento. 

Sinceramente, queria entender como o Gonçalo faz as coisas que ele faz. Ok, temos ótimas escritoras e escritores nesse mundo, muitos desconhecides ainda por vir, mas o que Gonçalo tem feito, não há. Ele é capaz de realizar tal torção das coisas do mundo material que não tem condições. Eu fico pasma. 

Vamos a alguns trechos: 


Hesitação

O HOMEM no meio da escada hesitava há vários dias entre subir e descer. Os anos passavam e o homem continuava a hesitar: subo ou desco?


Até que certo dia a escada caiu.

(Gonçalo M. Tavares em O senhor Brecht


O animal de Calvino (trecho) 

De manhã, Calvino dirigia-se à cozinha para dar de comer ao Poema. O bicho devorava tudo: nenhum alimento era desagradável ou esquisito- e tudo para ele parecia ser alimento.

(Gonçalo M. Tavares em O senhor Calvino)

Esses dias, ajudei o Jeff Bezos a vislumbrar mais uma ereção espacial dele (desculpa se aquele foguete é um pinto) e encomendei uns livros na Amazon, dentre eles, essa belezura aqui:


Eu tenho uma resistência com poemas em inglês, pois acho uma língua meio durona, meio sem fluidez. Não é que nem o espanhol, por exemplo, de ondulação fácil a cada verso. 

(Eu falei em um post passado que fico curiosa para ler ganhadores do Nobel de Literatura). 

Porém, Louise Glück me surpreendeu. Esse livro reúne três obras dela: Averno (2006), Uma vida no interior (A village life) (2009) e Noite fiel e virtuosa (Faithful and virtuous life) (2014). 

Li Averno nessa tarde agradável de domingo, que antecede a promessa do frio mais rigoroso dos últimos anos. Livro de poesia a gente nunca lê uma vez só e é claro que vou retornar a ele para alinhavar várias coisas, pois um poema se comunica absurdamente com o outro, mesmo sendo outro. Glück aposta em poemas mais longos, divididos em muitas partes, criando um grupo muito peculiar de imagens: celestes, da natureza e das estações, mas sempre em conjunto com a expressão do sujeito lírico. 

O poema October acaba assim:

From within the earth's

bitter disgrace, coldness and barrenness


my friend the moon rise:

she is beautiful tonight, but when is she not beautiful?

***

De dentro da amarga 

desonra da terra, frio e esterilidade


minha amiga lua sobe:

está linda esta noite, mas quando ela não é linda? 

(A tradução desse primeiro volume é da Heloisa Jahn)


Mais adiante, com o poema Landscape (Paisagem), lemos:

It is like losing a year of your life.

To what would you lose a year of your life?


Afterward, you go back to the old place -

all that remains is char: blackness and emptiness.


***

É como perder um ano de sua vida.

Em troca do que você perderia um ano de sua vida? 


Depois, você volta ao lugar de antes -

só o que resta é carvão: negrume e vazio.


Landscape é um poema longuíssimo e seu tamanho é diretamente proporcional a sua beleza. Louise vai acrescentando camadas, imagens novas ao poema e seguimos essa linha de quase sonho como uma narrativa saída de uma boca muito antiga. Estou encantada. 


Para ela, escrevi o seguinte:


tua boca põe fim à minha existência

o teu arranjo da noite

a alma

a lua em chamas

navegando fácil

na tua original língua dura

que nada resta

dizer 

espero o cessar sangue

sem esforço

assim como teus enigmas. 

Tudo nasce das leituras: poemas, ruas, olhares. Hoje tive a sorte de ler a rua e conhecer essa poesia maravilhosa da Louise Glück. Valeu a pena estar viva. 

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