Hoje estou aqui para exaltar essa figura master da nossa literatura brasileira que é Erico Verissimo (sem acento no E e no I). Nascido em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, em 17 de dezembro de 1905, o escritou transitou por vários gêneros narrativos: romance, novela, autobiografia, ensaio, infantojuvenis, you name it.
Não vou fazer uma pesquisa profunda sobre o escritor, pois, como muitos de vocês já sabem, eu geralmente não vou atrás da biografia de escritores (às vezes penso que devo fazer isso mais vezes, para entender a pessoa criadora de histórias).
Detesto biografismos, acho que a gente perde muito tentando ligar pessoa pública que escreve ao narrador da história com suas estratégias e contratos firmados dentro da ficção e pertencente apenas à ficção.
Quando a pessoa me vem com o papo de "a autora deve ter passado por isso" ou "o autor deve ser escroto assim" - porque toda autora mulher escreve sobre si e todo autor homem é escroto - eu já reviro os olhos umas trinta vezes. Não estou dizendo que quem escreve não coloca nada de si no texto. É engraçado, curioso, é MÁGICO que uma pessoa consiga escrever algo que é uma criação, uma elaboração de um outro caminho possível no mar de possibilidades da vida que enfrentamos e consiga ser diferente e, ao mesmo tempo, ela mesma ali dentro. Não acho que seja fácil enxergar as coisas desse jeito e nem sei se é o melhor jeito de ver a relação entre escritora/obra, mas é assim que me parece coerente. Biografismo é tão século XIX, gente.
Do mesmo modo, não gosto muito de acompanhar/ouvir escritoras/es falando sobre suas obras, pois acho que, embora seja interessante descobrir mais sobre os processos de criação, o livro tá no mundo e, portanto, descolado daquela pessoa que a produziu, pelo menos em termos daquilo que posso interpretar a partir da leitura.
Foto tirada por mim no Espaço Força e Luz - Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, em Porto Alegre
Verissimo, por seu turno, coloca esse posicionamento dentro de sua obra. Melhor dizendo: ele cria personagens complexas, com sentimentos complexos e faz com que elas interajam e recriem um mundo para nós de forma que a gente consiga enxergar uma tomada de posição, ou antes a não tomada de posição, a continuidade de uma política suja que beneficia os ricos. Isso está muito explícito em Incidente em Antares e, penso, esse seja um obstáculo para leitores que não curtem tanto quando história e ficção andam lado a lado.
O romance não pertence ao gênero romance histórico, pois não possui os atributos de um romance histórico (por exemplo, a distância entre o momento da escrita e dos eventos narrados), mas sim ao realismo fantástico, devido aos acontecimentos sobrenaturais que o sustentam.
Publicado em 1971, o livro conta como uma greve na cidade de Antares impactou a vida de seus habitantes e fez com que até mesmo seputalmentos fossem impedidos, de modo que sete defuntos levantaram de seus esquifes e exigissem um enterro digno.
A questão é que esse rolê todo só acontece na segunda parte. Antes, temos que enfrentar por volta de 180 páginas (depende da edição, a minha é uma bem antiga da Editora Globo) de muita história do nascimento de Antares e de como as coisas se resolviam no Rio Grande do Sul fronteiriço quando o assunto é poder, terras e dominação. Vacarianos de um lado e seus arqui inimigos Campolgardos, de outro, disputam o poder, apoiam líderes do governo de lados opostos quando é possível, peleiam juntos quando é necessário e assim se delineia um espaço de poder muito comum a várias cidades do Brasil. O livro aborda muitos eventos históricos do Brasil e abarca os anos 1830- 1964. Há ênfase no período pré-Getúlio Vargas, passando pela rasteira do exército em seu mandato, que abandona para voltar no ano seguinte eleito pelo povo.
Os eventos insólitos de Antares se passam em uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1963 e já observamos na história duras críticas à ditadura. Curioso que o livro tenha sido publicado - embora censores não fossem as pessoas mais espertas do mundo.
Eu adoro esse livro porque essa parte da História do Brasil me interessa muito. Lembro de, no ensino médio, ficar chocada com tanto presidente sofrendo ataque cardíaco durante o mandato ou às portas de assumir a posição. A figura de Getúlio Vargas no livro me parece muito ambígua, e imagino que assim deva ter sido a sua história. Amado pelo povo, mas descartado pelo exército em determinado momento, pressionado pelo mesmo exército, Vargas põe fim em sua existência com uma bala no peito. Teorias da conspiração questionam se foi mesmo suicídio - eu nunca voltei a esse enredo pra saber o desfecho. Porém, já estou preparada para encarar biografias sobre o "Gegê" para tentar entender melhor esse lance.
Idem foto anterior
Uma das coisas que mais gosto em Erico Verissimo é como ele coloca muitas emoções em suas histórias: tem safadeza, romance, perversidade, bondade, maldade e tudo isso amalgamado no interior de personagens que nos permitimos ora amar ora odiar.
Alguns trechos do romance para vocês terem uma ideia.
Nesse momento de susto e angústia coletiva, um cético gaiato, desses que costumam menosprezar a terra onde nasceram e vivem, murmurou: "A troco de quê Deus havia de começar o Juízo Final logo nesse cafundó onde Judas perdeu as botas?"
*
O homem que limpava as unhas sorriu quase sonhadoramente ao dizer:
- Eu até que simpatizava com essa política externa independente que o Jânio procurou seguir, que diabo!
- Política independente? - exclamou Tibério Vacariano. - O Brasil está endividado até os gargomilos, praticamente hipotecado aos Estados Unidos e ainda queira dar-se ao luxo de fazer parte desse tal de Terceiro Mundo. Chegamos a namorar até essas novas republiquetas africanas. Redículo!
*
Encaminhou-se para a porta.
- Erotildes? Tu já viste Deus?
A morta se volta.
- Ainda não. Decerto só vou ver Ele quando me enterrarem como cristão.
Rosinha limpa tremulamente as lágrimas do rosto com a ponta dos dedos.
- Vou te pedir um favor...
- Qual é?
- Diz pra Deus que me dê uma boa morte, já que não me deu uma boa vida.
Essa é uma parte bem emocionante do livro, pois Rosinha é prostituta. Erotildes conseguiu sair desse sofrimento pelas portas da morte. Internada com tísica na ala dos pobres do hospital, a medicação existente para a doença nunca chegara em pessoas como ela. São eventos como esse que escancaram as desigualdades, enquanto na parte I, denominada Antares, temos a experiência de como que essa estrutura de exclusão se forma.
Os sete cadáveres também obedecem à hierarquia social. Temos a matrona, dama privilegiada Quitéria Campolargo, o advogado Cícero Branco, o torturado pela polícia João Paz, o sapateiro comunista Barcelona, o pianista frustrado Menandro Olinda, a prostituta Erotildes, e o alcóolotra Pudim de Cachaça.
Apesar de ser uma releitura, não lembro o que acontece na negociação entre defuntos e os poderosos de Antares. Vai ser quase como ler pela primeira vez.
No Espaço Força e Luz ainda tem essa biblioteca que é a coisa mais boa desse mundo. Dá pra conferir manuscritos, edições dos livros do Erico.
Por hoje é só, pessoal. Espero que tenham curtido esse passeio por Incidente em Antares e pelo meu acervo de fotos no Espaço Força e Luz.
Está um calor de lascar aqui em Rio Grande/RS, achei que seria impossível criar qualquer coisa, mas estou feliz por ter encontrado ânimo para escrever esse texto. Divido com vocês com muito amor pelo Erico e pela literatura.
Até a próxima!